Lamego (CNN Autárquicas 2025) –A noite em Lamego não chega de rompante.
Antes se vai adensando em camadas que se colam umas às outras. Primeiro o cheiro das farturas, esse perfume gorduroso e doce que se entranha como incenso profano. Depois o ranger metálico dos carrinhos de choque, faiscando em clarões que parecem vaga-lumes elétricos, a estalar contra a escuridão. Mais ao fundo, os bombos marcam o compasso e disputam espaço com músicas de feira, tudo a rebentar em simultâneo, como se fosse uma orquestra sem maestro, onde tradição e excesso, devoção e romaria, convivem sem pedir licença. Setembro traz a Senhora dos Remédios e transforma Lamego numa praça de festa, cada esquina em palco improvisado: pregões a furar o bulício, as rifas de quermesse, promessas murmuradas a caminho do santuário, crianças que deviam estar na cama, mas ganham fôlego para “só mais uma” corrida.
E há, sem aviso, a interrupção que não interrompe: uma boina verde que atravessa a multidão como se fizesse parte do cenário. Primeiro um militar de mão dada com dois filhos, é mão de pai, firme, mas lassa, depois um jipe que avança e rápido desaparece, logo outro grupo que cruza a romaria em passo firme. Não são festa, mas não destoam. São farda entre farturas, disciplina no meio dos folguedos. Lamego vive assim: a devoção que desce, ou sobe, degrau a degrau do santuário e a tropa que habita no quartel de Santa Cruz.
O quartel ergue-se acima da cidade, muralhas a dominar o vale. Do lado de fora, a tabuleta limpa: Área Militar – Acesso Restrito. Do lado de dentro, gravada no granito, a frase que endireita as costas a quem a lê: “Operações Especiais — que os muitos, por ser poucos, não temamos.” É doutrina e síntese: poucos, mas prontos. Pouco mais abaixo, num edifício de fachada de azulejo frio e chão de mosaico que range à passagem, vive a Associação de Operações Especiais. Meio museu, meio lar, espaço onde o tempo se dobra em estandartes, brasões, fotografias a preto e branco, boinas emolduradas, as primeiras botas do primeiro curso expostas como relíquias. No letreiro lê-se: “Vontade e Valor.” À porta, está Daniel Cruz. Conversamos antes da festa.
Tem 49 anos, é de Lamego desde sempre e não precisa de justificar a ligação: cresceu a vê-los passar na rua, colunas de homens a trote, mochilas pesadas, aquele silêncio peculiar das ordens cumpridas em uníssono. “Desde miúdo fiquei com o bichinho”, recorda. “Morava numa zona por onde passavam muitas vezes durante a instrução. Apresentei-me com 19 anos. Um miúdo, mochila às costas, a entrar nos portões e a pensar: vamos ver o que vai acontecer.”
Primeiro a recruta, cinco semanas mais calmas. Depois o curso: 12 semanas que pareciam uma eternidade. “Aqui o relógio não tinha horas, tinha serviço. Era 24 sobre 24. Uma instrução podia começar às seis da manhã e acabar de madrugada. Nunca sabíamos quando parava.” Não foi só o físico que lhe pesou. “A privação do sono era talvez o mais duro. Chegava a haver momentos em que pensei em desistir.” O que o segurou foi a parelha, esse casamento operacional em que a vida do outro se mistura com a nossa. “Hoje estou em baixo e ele levanta-me; amanhã é ao contrário. Para onde um vai, o outro tem de ir. É aí que nasce o espírito de camaradagem. E fica para a vida.”
No primeiro almoço de curso levantou o prato e encontrou um papel. Uma curta frase, enigmática, ou profética: “Hoje a noite vai ser longa.” E a noite foi mesmo longa. “Era tudo psicológico. A chamada prova fantasma, um percurso cheio de situações em que tínhamos de levar uma mensagem até ao fim, custasse o que custasse. O corpo queria desligar e a cabeça tinha de continuar a funcionar. Queriam levar-nos ao limite e ver se bloqueávamos. Era treino para pensar mesmo cansados.”
No dia em que recebeu a boina, em que a instrução terminou, em que era já ranger por fim, chorou. “Foi o sonho de miúdo, não é?” Guardou-a em casa, benzida, exposta à entrada, junto ao crachá e à fotografia do momento. “Está lá para eu a ver todos os dias. É orgulho, mas também memória. É lembrar-me do que fui e do que tenho de continuar a ser.”
O nome “Ranger” não vem em bilhete de identidade, é alcunha herdada de um curso nos Estados Unidos. O ramo chama-se Operações Especiais, existe aqui desde 1960, mas em Lamego tratam-nos pelo nome próprio. “É orgulho. A relação com a cidade continua forte, embora hoje se veja menos farda na rua.” Nas grandes ocasiões, como a procissão da Senhora dos Remédios, voltam a ser presença central. “A presença dos Rangers é uma honra para todos. Eu próprio tive a honra de transportar a imagem no meu último ano.”
O que os distingue, aos Rangers dos outros? “Somos uma força não convencional. Pequenos grupos atrás da linha inimiga. Não é frente a frente, é infiltração, sabotagem, resgate. Costumamos dizer que é uma guerra santa.” Daniel esteve apenas num teatro de operações, mas a unidade correu mundo: África, Ásia, Timor, Bósnia. Antes de cada missão havia meio ano de preparação. “Estudávamos terreno, mapas, cultura, até os hábitos mais pequenos. Lembro-me de um camarada na Bósnia que explicou: recusar a aguardente local podia ser pior do que uma má abordagem tática. Esses detalhes contam.”
Um dia passou à reserva. Deixar a tropa custou-lhe. “Às vezes acordava e parecia que ainda estava lá. Dez anos de hábito não se apagam de um dia para o outro.” A vantagem de viver em Lamego foi ter a unidade à vista: mata a saudade sem matar o tal bicho. “Mas custou, claro que custou. Não é fácil tirar a farda.” Faz uma pausa, como quem pesa o silêncio. “Hoje fala-se de saúde mental, ainda bem. Na geração do Ultramar calou-se quase tudo. Na minha calou-se bastante. Vergonha, pudor, a armadura do mito. Há quem se deixe abater e, quando pede ajuda, já é tarde.”
A cidade mistura-se naturalmente na conversa. Daniel lembra-se de ter 14, 15 anos “e ver Lamego com mais movimento do que Vila Real”. Hoje é o contrário. “Foi a universidade que lhes deu vida, nós tínhamos três ou quatro polos politécnicos e desapareceram.” Depois veio a autoestrada. “A A24 foi uma bênção e uma maldição. Encurtou distâncias, mas também levou gente. Hoje à noite a malta nova mete-se no carro, dá um salto a Vila Real e volta. É rápido, demasiado rápido. Lamego corre o risco de ser um dormitório.”
Falámos de estrada a mais, de faculdade a menos, e falamos de hospital, em Lamego, que é ali curto. “Se a minha mulher precisa de uma especialidade, tem de ir a Vila Real, ao Porto ou até a Braga. O meu filho, por causa da pediatria, também tem de ir a Vila Real — às vezes só para uma consulta rápida, quase simbólica. É estrada atrás de estrada.” Mas viver aqui tem vantagens que não aparecem em relatório. “Ponho o meu filho na escola em cinco minutos. É calmo, sem stress. Há qualidade de vida.” Sorri. “O problema é que a qualidade de vida nem sempre chega para segurar as pessoas.” E fala de quem ficou e de quem saiu. “Da minha geração saiu muita gente. É no Natal ou atrásra, na ‘Senhora’, que nos reencontramos. A cidade envelheceu. Não é por falta de amor à terra, é por falta de oportunidades, de empregos.”
A política entra como quem muda de marcha. Daniel fala de efetivos curtos e vencimentos baixos no Exército. “Não é pedir salários milionários; é pedir que não sejam miseráveis.” Poucos efetivos significam fins de semana consecutivos na unidade, pouco regresso a casa. “Mesmo em falta de gente e de meios, estão sempre lá: em incêndios, em cheias, em operações de proteção civil. As populações reconhecem. E agradecem. Sentem segurança quando veem a farda e a boina. É respeito e é orgulho. A cidade está para os Rangers como os Rangers estão para a cidade, eu acho.”
O investimento em defesa foi sendo adiado sucessivamente. “Anos de desinvestimento pesam. Ainda usamos material da Guerra Colonial. Parece incrível, mas é verdade.” Daniel baixa a voz, como quem não precisa de levantar o tom para vincar a ideia. “Convém termos força preparada se algum dia nos baterem à porta. E ninguém sabe quando é que isso pode acontecer.” A guerra da Ucrânia pôs o tema em cima da mesa, de forma crua. “Lá em casa fala-se muito disso. Fala-se à mesa do jantar, com os miúdos a ouvir. Estou preocupado. Não quero que entrem por aqui adentro. E ninguém quer, mas é por isso mesmo que temos de estar prontos.”
E chega a pergunta, por falar de “miúdos”, que regressa sempre: o serviço militar obrigatório. Daniel não hesita. “Devia voltar. Não é nacionalismo, é patriotismo. Seis meses de tropa dão ferramentas que nenhuma escola dá: horários, disciplina, respeito pela hierarquia, saber desenrascar-se, a camaradagem. No fim cada um segue o caminho que quiser, mas leva uma caixa de ferramentas invisíveis.” Fala do filho mais velho, com 21 anos, que ainda pensou em ir. “Mas faltam os incentivos. O primeiro é o salário. Tirando isso, não se percebe. Muitos não querem, e não sei dizer porquê. Acho que o país se habituou a viver sem olhar para a sua última linha de defesa.” Neste assunto, uma última instrução, quase conselho de pai: “O serviço militar obrigatório só faz é bem.”
E fala ainda de mulheres no Exército. Não as há nas Operações Especiais ainda. “Houve mulheres que tentaram. Fisicamente eram boas, mas não é só cronómetro nem pista de obstáculos. É também a solidão quando a camaradagem fica do outro lado da camarata. Caserna mista não há, e sozinha depois de uma prova a psicologia pesa. Quando forem mais, será mais fácil que sejam muitas. Conseguem tudo igual aos homens.” A frase fica a ecoar, com a leveza de uma coisa certa, daquelas que não pedem discussão: é só uma questão de tempo. Ou questão dos tempos.
Falando da Associação, esta nasce de uma confraternização em 1978, formalizou-se em 1980. O objetivo é simples: ninguém perder o rasto a ninguém, ninguém se perder a si próprio. Faz encontros, mantém espírito de corpo, tem fundo de apoio social. “Há um fundo de apoio social para ajudar sócios, sim, Rangers e familiares em situações complicada — físicas, psicológicas ou financeiras. Já serviu para acudir um camarada, há pouco tempo, numa situação muito má. Muitas vezes chegamos antes do Estado. O Estado esquece-se. Miúdos de 18 anos voltam homens e trazem marcas. Deviam ter um apoio incondicional.” É aí que se mede um país, conclui. “Na forma como cuida de quem o protegeu.” Diz isto sem rancor, apenas com a clareza de quem viveu por dentro.
Na Associação, entre fotografias de curso e boinas que já não vão à rua, está pendurada a Prece de Operações Especiais. Não é uma súplica de conforto, mas o contrário: “Dai-nos, Senhor, tudo aquilo que nunca Vos é pedido. Dai-nos, pois, ó Deus, o que ninguém quer, o que todos rejeitam: a insegurança, a incomodidade, a inquietude, a tormenta e o risco, a vereda estreita e agreste que vai até Vós.” E mais se pode ler adiante: “o valor, a vontade, a força e a fé que temperam a alma do soldado na grandeza da sua servidão.” Daniel não a recita toda, mas resume o que importa: “Quem acredita, agarra-se; quem não acredita, também. É cultural.” Em Lamego, cidade de romarias, não soa estranho. No alto, pedem milagres à Senhora dos Remédios; aqui, ao lado, pedem coragem ao Deus dos Exércitos.
Saímos de novo à rua e o dia ficou para trás. Agora é noite fechada, e a festa regressa ao primeiro plano: a romaria continua como se nunca tivesse parado, música a galgar muros, cheiro a febra e a vinho entornado, miúdos lambuzados de açúcar a gastar-se nas últimas voltas dos carrinhos de choque. Setembro em Lamego é isto — a Senhora lá em cima a prometer milagres, a cidade cá em baixo a perder-se entre farturas e foguetes. Daniel já nos ficou para trás, mas uma ideia acompanha: a paz é sempre intervalo e convém estar preparado. E quando um jipe, mais um, cruza discreto a multidão, percebe-se que não é intruso, mas parte da coreografia. Festa e farda a conviverem sem estranheza, como ali no início, como sempre ali. O resto é o compasso dos bombos a ressoar na noite e a frase inscrita na pedra a repetir-se, como uma espécie de oração: que os muitos, por ser poucos, não temam.
O País do Meio não é um roteiro, pelo menos não turístico. Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce a Estrada Nacional 2 e recolhe os retratos — íntimos, sabedores e naturais — de quem é das cidades, ou mais dos lugares, que a EN2 atravessa. Não são histórias de alcatrão, são histórias do caminho, do país real, ouvindo a voz de quem não é notícia — mas é um país, ou faz um país. Na antecâmara das Autárquicas de 2025, o pulso mede-se sem cartazes, sem promessas eleitorais, sem corta-fitas, sem política; o pulso mede-se como mediu Miguel Torga: “Cultivo-me pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das coisas”.
Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce pela Estrada Nacional 2 e recolhe retratos íntimos de quem é destes lugares
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